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Vampyrotheutis Infernalis

by Operário Ribeiro

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1.
Ambos, homens e Vampyroteuthes, estamos engajados contra o esquecimento, essa tendência fundamental da natureza. Ambos armazenamos e transmitimos informações adquiridas. Ambos somos seres históricos. Mas embora estejamos ambos engajados na memória, não o somos no mesmo tipo de memória, nem utilizamos os mesmos métodos para armazenar dados nela. E esta diferença é decisiva. Os homens procuram imprimir as informações adquiridas sobre objetos. Tal informação destarte “objetivada” vai ser recolhida por outros homens que passam pelos objetos informados. Confiamos na relativa permanência do mundo objetivo, e é por isto que lhe confiamos as nossas informações adquiridas. Que os objetos informados nos sobrevivam, e que atestem, após a nossa morte, a nossa passagem pelo mundo. Destarte espera a humanidade possuir dois armazéns de informações: o das informações genéticas, o ovo, e o das informações adquiridas, o da cultura objetiva (livros, edifícios, quadros). Graças a esses dois armazéns, a humanidade se considera imortal: como espécie no ovo, como indivíduos nos objetos informados. Tal confiança humana na permanência do mundo objetivo se apresenta sumamente irrisória do ponto de vista de quem, como o Vampyroteuthis, habita um ambiente líquido. De tal ponto de vista, o único armazém de informações merecedor de confiança é o ovo. A informação genética é aere perennius, e não apenas sobreviverá a todos os livros, edifícios e quadros, como também sobreviverá à própria espécie, embora de forma mudada. Quando todas as obras humanas tiverem sido reduzidas a pó há muito tempo, a informação genética humana continuará sendo transmitida de geração a geração, embora possivelmente por espécie evoluída da humana. De maneira que o problema do engajamento histórico é elaborar métodos que permitam armazenar os dados adquiridos na mesma memória que também armazena os dados inatos. Confiar na permanência da espécie e do seu futuro desenvolvimento, e não na permanência do mundo objetivo. Por certo: tais métodos de armazenamento e de transmissão podem recorrer a objetos. Mas tais objetos não serão armazéns, senão canais de transmissão, “media”. Pode parecer, à primeira vista, que tal diferença de escolha de tipo de memória e de método não seja decisiva. Que se trate apenas de diferença de acento. Os homens, eles também, consideram os objetos como media, e quando manipulam objetos, procuram, eles também, transformá-los de barreiras para a comunicação em canais que transmitam informações a outros homens. E o Vampyroteuthis, ele também, tem recurso a vários tipos de objetos (cores, luzes, nuvens de sépia), os quais manipula, ele também, para que transmitam informações para outros Vamoyroteuthes. A diferença seria apenas que os homens confiam um pouco mais que o Vampyroteuthis na permanência dos objetos. Tal minimização da diferença seria, no entanto, engano. Porque o homem é ente que busca a sua imortalidade nos objetos, e é por isto que se exprime neles. E o Vampyroteuthis é ente que busca a sua imortalidade no outro, e é por isso que se exprime dentro do outro por meio de objetos. Trata-se de dois gestos articuladores diferentes. De duas manifestações do espírito diferentes. De dois tipos de publicação diferentes, de duas atitudes públicas diferentes. De duas maneiras diferentes de externar intimidades, de publicar o privado, de exibir o inibido. De duas atitudes opostas em relação ao inefável. Em suma: trata-se, com efeito, de duas artes diferentes. Vampyroteuthis Quando o homem procura exprimir determinada vivência, quando procura tornar audível o inaudito e visível o invisível, o faz em função de determinado objeto. Na articulação humana, vivência e objeto são indissolúveis um do outro. Tudo que o homem vivencia é vivenciado “para” um determinado objeto: para o mármore, para determinada língua falada ou escrita, para sons musicais, para a fita de celulose. E todo objeto que o homem encontra no seu caminho rumo à morte contém implicitamente as categorias que permitem articular determinadas vivências: determinado sentimento, pensamento, valor, desejo. Não é que o homem passe primeiro por uma vivência qualquer, e depois procure por um objeto apropriado para nele exprimi-la. O homem vivencia, desde já, em função de determinado objeto. Vivencia como escultor de mármore, como orador ou escritor português, como músico, como produtor de filmes. Os objetos, sejam eles “materiais” ou “imateriais”, sejam eles pedras e ossos ou números e letras, modelam toda vivência humana. Pois todo objeto é pérfido: resiste à tentativa humana de informá-lo. E todo objeto é pérfido à sua maneira. A pedra quebra quando martelada, o osso racha quando cinzelado, os números impõem suas próprias regras ao pensamento neles expresso, a escrita linear transforma o sentimento por ela articulado. Informar objetos é ter que lutar contra a perfídia específica de todo objeto. E tal luta vai revelando a estrutura da resistência objetiva: a estrutura do algodão que cede, do vidro que racha, do cimento armado que seca, da escala tonal que se tempera, da sintaxe de língua que se flexiona. Pois tal descoberta da estrutura implícita em todo objeto é, ela também, vivência que vai sendo adquirida pelo homem. É vivência tão violenta, que vai provocando não apenas conhecimentos e técnicas apropriados ao objeto, mas também modificações do próprio homem. Importa, pois, armazenar e transmitir tais vivências adquiridas, e isto pelo método da expressão no próprio objeto. Surge destarte feedback entre homem e objeto, no curso do qual o homem vai informando o objeto, e vai sorvendo vivências nele que vai novamente utilizar para informar o objeto. Tal feedback é a essência da arte humana. A resistência do objeto provoca o homem. Como se fosse voz que clama do objeto, e o chama a informá-lo. Tal é a vocação humana. Há homens cuja vocação é informar pedras, e outros cuja vocação é informar letras. Quem não encontrar o objeto de sua vocação, viverá frustrado. A vocação, tal feedback homem-objeto, é tão rica em vivências, é aventura tão apaixonante, que faz com que o homem se esqueça do seu propósito original, que era o de informar o objeto a fim de que a informação continue disponível para outros homens. O objeto mesmo vai absorvendo seu interesse. Na medida em que a pedra vai se transformando em estátua, a escrita em texto, o homem vai se transformando em escultor e escritor, e vai se esquecendo que é homem para outros homens. O homem, com todos os seus sentimentos, pensamentos, valores e desejos vai se realizando na pedra e na letra, toda a sua ação é paixão vai se concentrando sobre o objeto. Exemplo de tal objetivação do interesse existencial é a poesia. A língua é aparentemente medium para a comunicação intersubjetiva, e no entanto o poeta se realiza durante a luta contra as regras e as estruturas profundas da língua. Não mais fala através da língua, mas contra ela. Objetiva sua intersubjetividade. Sua vocação é informar a língua. A arte humana não é, pois, como o fazem crer os burgueses bem-pensantes, fabricação de objetos ditos “belos”. Arte humana é o gesto pelo qual o homem imprime sua vivência sobre o objeto de sua vocação, a fim de realizar-se nele, imortalizar-se nele. Todo objeto destarte informado é “obra de arte”, seja ele equação matemática, instituição política, ou sinfonia. Por certo: a equação matemática transmite, sobretudo, informação epistemológica, a instituição política sobretudo informação ética, e a sinfonia sobretudo informação estética, mas tal rotulamento de “obras” em científicas, políticas e artísticas é enganoso. Porque toda vivência humana a ser expressa em objeto implica todos estes três parâmetros informativos. Toda vivência implica conhecimento, valor e sensação, e os implica simultaneamente. Dividir os objetos informados, a “cultura”, segundo os três rótulos, é ignorar que o homem é ente que, por vocação exprime vivências adquiridas sobre objetos. Ente que, por vocação, “trabalha”. E que toda obra humana é “arte”: resposta à provocação emitida por determinado objeto. O Vampyroteuthis não é provocado por objetos. O seu interesse existencial não é desviado pelos objetos: dirige-se sempre rumo ao outro. A sua atividade criadora, pela qual vai ele armazenando vivências adquiridas, transpassa os objetos e se dirige rumo ao outro. Os seus tentáculos não são freados pela nuvem de sépia, como o são os dedos humanos pela pedra, os seus chromophorios não são encerrados pelas regras da coloração da pele, como o é o falar humano pelas regras da língua. Tentáculos e chromophorios transpassam o objeto. Não “fazem”, “perfazem”. Sua criação não é “feita”, mas “perfeita”. Por isso, o Vampyroteuthis, ao criar, não vivencia a perfídia do objeto, mas a perfídia do outro. Quando ele articula o inefável, não luta contra a perfídia da matéria, mas contra a perfídia do receptor da mensagem. Não são os objetos que ele quer violentar ao impor-lhes informação nova, é o outro que deve ser violentado para ser informado. Para o Vampyroteuthis a memória do outro é o que para nós são pedra e língua. O Vampyroteuthis é escultor e escritor contra o outro. Martela e compõe o outro. A vocação do Vampyroteuthis é o outro. É durante a violação do outro que o Vampyroteuthis vai se realizando. É por tal luta contra o outro que ele vai adquirindo vivências novas. É tal luta que o fascina, que absorve o seu interesse. Tal feedback entre emissor e receptor, tal diálogo, é a essência da arte do Vampyroteuthis. Em tal criação artística, podemos distinguir entre várias fases. (1) O Vampyrotetuhis passa por uma vivência determinada. (2) Procura por modelo na sua memória para captá-la. (3) Verifica a ausência de tal modelo: a vivência é inaudita. (4) Tal vivência arrebatadora transpassa o seu organismo, é triada pelo cérebro, e transmitida aos chromophorios. (5) Os chromophorios transcodam a vivência para o código da “pintura da pele”. (6) Tal coloração jamais vista da pele provoca a curiosidade de outro Vampyroteuthis. (7) O emissor usa a coloração nova para seduzir o receptor e copular com ele. O resultado de tal processo criativo é que doravante há um modelo para captar a vivência inaudita, e que tal modelo está doravante guardado na memória do copulado. A informação adquirida foi destarte incorporada ao diálogo vampyrotêuthico, e o foi para sempre. Porque o diálogo vampyrotêuthico é eterno, tão eterno quanto o é a informação genética guardada no ovo. Um processo criador comparável como este ocorre quando o Vampyroteuthis não recorre aos chromophorios, mas à nuvem de sépia para destarte transmitir informação adquirida. Seria erro pensar que em tal processo se estabelece feedback entre nuvem e tentáculos, como o feedback entre o mármore e os dedos. E isto não por ser a nuvem plástica e efêmera, e o mármore duro e permanente. Mas por ser a nuvem secreção do próprio Vampyroteuthis, e o mármore objeto estranho ao homem. A nuvem não fascina o Vampyroteuthis, como o mármore fascina o homem, porque a nuvem não é estranha. O Vampyroteuthis é fascinado ao modelar a nuvem, tanto quanto é fascinado o homem ao modelar o mármore, mas o Vampyroteuthis é fascinado pelo efeito que a nuvem modelada vai ter sobre outro Vampyroteuthis. Seu fascínio não é objetivo, mas intersubjetivo. Eis o que acontece na modelação da nuvem. O Vampyroteuthis passa por uma vivência determinada, por uma aventura. Sua informação genética o programa para secretar sépia em tal situação perigosas. A mesma informação genética o programa para modelar a nuvem de modo que o perigo se dirija contra tal nuvem, e não sobre ele. O Vampyroteuthis é geneticamente programado para fazer com que a intenção do inimigo seja desviada. Mas o Vampyroteuthis reflete: ao contrário dos octopoda menos desenvolvidos, controla e reprograma o seu programa genético em função de decisões deliberadas. A vivência pela qual Vampyroteuthis acabou de passar deve ser expressa na nuvem, não mais para desviar a intenção de um agressor hipotético, mas para ser armazenada na memória de outro Vampyroteuthis. Não deve ela espantar um agressor hipotético, mas deve espantar outro Vampyroteuthis, a fim de obrigá-lo a armazená-la. Deve épater les bourgeois, para que eles se lembrem do acontecido. O propósito da modelação da nuvem é desviar a atenção dos demais Vampyroteuthes da sua intenção e em direção da informação nova. Que os outros Vampyroteuthes se precipitem sobre a nuvem, que a devorem pensando que estão devorando o emissor da mensagem. Destarte a nova informação será incorporada no diálogo vampyrotêuthico para sempre. Pelo método do engano deliberado, do artifício, da mentira. “Arte”. O processo criativo, no Vampyroteuthis é o método pelo qual modelos novos de sensação, de conhecimento e de valor são articulados e transmitidos aos outros, que são violentados por sedução ou por mentiras, para armazená-los. A arte vampyrotêuthica é uma série de artifícios, graças aos quais a sociedade vampyrotêuthica é violentada para admitir determinados modelos, transmitidos pelo intermédio de objetos efêmeros e desprezados. Por isso, não há, para o Vampyroteuthis, “arte pura”, nem “ciência pura”, tampouco “politologia pura”. O Vampyroteuthis é sempre “artista total”, isto é, ente que procura alcançar a imortalidade pela modelação epistemológica, estética e ética do outro. Busca ele sua imortalidade pela violência exercida sobre o outro. Para ele, ciência e política não passam de estratagemas de arte. Não passam de arapucas. A meta é informar o outro, alterá-lo, impor-lhe informação determinada, conhecimento, comportamento, sensações determinados. Que são conhecimento, comportamento e sensações deliberados pelo emissor da mensagem. A arte vampyrotêuthica é total e totalitarista, porque sua matéria prima não são objetos, mas a sociedade. O Vampyroteuthis é o artista que martela a sociedade para imortalizar-se nela. O motivo da criatividade vampyrotêuthica, da sua busca por imortalidade, é o ódio do outro. Por isso, “arte” é sinônimo de “engano”. Por certo: o processo criativo vampyrotêuthico é radicalmente diferente do humano: é gesto diferente e tem propósito diferente. No entanto, sua consideração provoca duas reações opostas. De um lado, a nossa própria arte vai revelar, nos seus aspectos anti-vampyrotêuthicos, caráter pouco lisonjeiro. De outro lado, vamos descobrir uma tendência nítida em nossa própria arte de aproximar-se da arte do Vampyroteuthis. Podemos resumir tal reação da seguinte forma: na medida em que a arte humana diverge de vampyrotêuthica, é ela empresa confusa e indisciplinada, e na medida em que a arte humana vai adquirindo autoconsciência e disciplina, vai convergir com a arte do Vampyroteuthis. Os homens, ao contrário dos Vampyroteuthes, possuem “pureza”: arte pura, ciência pura, técnica social pura. Mas do ponto de vista do Vampyroteuthis, tal pureza vai se revelar sujeita: o artista é puro quando seu interesse existencial estagnar no caminho rumo ao outro no pântano de algum objeto sujo (em pedra, em som, em sintaxe de língua). O cientista é puro quando seu interesse estagnar no pântano de outro objeto sujo (em fenômeno, em equação, em teoria). E o técnico social é puro quando seu interesse existencial conseguir transformar o outro, rumo ao qual se dirige, em objeto (da economia, da sociologia, da politologia), e isto é o mais sujo de todos os objetos. De maneira que “pureza” é consequência do desvio de interesse, perversão de interesse. O gesto artístico puro se revela no gesto de embaraço, como quando uma galinha vai colher grãos quando não sabe se deve fugir ou atacar o inimigo. A arte humana é pura, porque se esqueceu do seu propósito, que é o de transmitir informações adquiridas rumo a outros, a fim de que estes as armazenem. Mas os homens começam a se tornar conscientes desse seu esquecimento. Começam a se dar conta de que a história da arte é uma história de mal-entendidos. Começam a fazer “teoria da comunicação”, a conscientizar e disciplinar o gesto da arte. A consequência disto é a revolução das comunicações ora em curso, revolução esta que vai reformular o fazer humano todo. No fundo, tal revolução consiste no desvio do interesse existencial, estagnado nos objetos, de volta para o outro. As nossas estruturas comunicacionais vão se transformando fundamentalmente, no sentido de constituírem media efêmeros e transpassáveis, que permitem informar o outro sem ter que passar por objeto. É como se a humanidade, depois de uma volta multimilenar pelo mundo dos objetos, estivesse agora reencontrando o caminho do Vampyroteuthis. Tal vampyroteuthização da nossa arte merece ser considerada um pouco mais de perto. Antes da revolução industrial, todo homem criativo era artesão, fosse ele ferreiro, sapateiro, pintor ou poeta. A distinção pós-industrial entre artesão e artista era non-sense: todos esses criadores imprimiam informação sobre objeto, seja ferro, couro, tela ou letra. O objeto guardava a informação expressa nele, era “obra”, e a informação guardada era o “valor” da obra. De maneira que os três conceitos: informação, valor e obra eram inseparáveis. Juntos, constituíam “cultura”. A revolução industrial destruiu tal conceito de “cultura”. Inventou método de produção que permite imprimir informações sobre ferramenta que a imprime sobre objetos. Não mais o ferreiro ou o sapateiro, mas a ferramenta informa ferro e couro, e o homem criador é o ferramenteiro. É a ferramenta que armazena a informação, é a ferramenta que tem o valor, e o objeto apenas transmite a informação da ferramenta. Deixa de ser obra, e seu valor passa a ser de mais em mais baixo. O objeto e o valor vão se separando, e o conceito da “obra”, portanto do trabalho, vai se diluindo. O exemplo mais esclarecedor de tal ruptura do conceito “cultura” é fornecido pela imprensa, invenção precursora da revolução industrial toda. É na máquina impressora, e não no livro impresso, que a informação é armazenada, e o valor está no manuscrito, não no livro lido, que passa a ter valor desprezível. O escritor passa a ser ferramenteiro. A sociedade não se deu conta, na ocasião, do impacto da revolução industrial sobre o processo criador, porque a arte, no sentido restrito, moderno do termo, continuou artesanal, intocada pelos novos métodos de produção, já que estava relegada aos guetos chamados “exposições e museus”. A segunda revolução industrial que se inicia atualmente constitui uma nova reformulação dos métodos de produção: informações não mais são armazenadas em ferramentas, mas em programas cibernéticos de aparelhos produtores de ferramentas. Doravante é o programador (o analista e compositor de sistemas) e não mais o ferramenteiro quem informa. O aparelho vai imprimir a informação automaticamente sobre ferramentas, as quais, por sua vez, vão imprimi-la automaticamente sobre incontáveis objetos. Surge uma maré montante de gadgets cada vez mais baratos que são desprezíveis por serem estereótipos banais, efêmeros, e portadores de informação diluída: “a cultura das massas”. Cultura das canetas plásticas, das casas pré-fabricadas, das opiniões políticas estereotipadas. Cultura programada. Cultura sem valor porque produzida automaticamente por aparelhos. O valor e a informação são doravante armazenados nas memórias artificiais dos aparelhos. Pois tal maré inflatória de objetos desvalorizados leva ao desinteresse pelos objetos. Tais objetos não mais fascinam. Não interessa mais possuir tais objetos. São objetos de mero consumo. Isto é: são utilizados até que se gaste a informação impressa sobre eles, para depois serem jogados na lata de lixo. O interesse da sociedade vai se desviando dos objetos para a informação, a qual, no entanto, é inacessível aos consumidores. Está guardada na memória dos aparelhos. E é transmitida, diluída, não apenas pelos gadgets, mas, sobretudo, pelos canais efêmeros da comunicação de massa. De maneira que a sociedade do futuro imediato será a sociedade de consumo da informação, mais desinteressada no consumo de “bens”, de objetos. O interesse vai se desviando da economia para a sociologia. Sociedade intersubjetiva: sociedade de Vampyroteuthes. O homem era, até recentemente, ente que trabalha. Trabalhar é imprimir informação sobre objetos. “Transformar o mundo objetivo”. Doravante serão os aparelhos que farão isto. Os homens deixarão de ser trabalhadores, e passarão a ser programadores e receptores de mensagens. A “moral de produção” desaparecerá simultaneamente com a “moral da propriedade”. Surgirá uma nova moral, a da elaboração e do consumo de mensagens. A existência humana não mais se realizará na luta contra objetos, mas na luta pela preservação e transmissão de informações adquiridas. Os homens deixarão de ser “operários”, e passarão a ser “funcionários de sistemas”. Artistas totais funcionando em um totalitarismo programado. Vampyroteuthes. O exemplo mais esclarecedor de tal nova ruptura do conceito “cultura” é fornecido pela fotografia, invenção precursora da segunda revolução ora em curso. A fotografia individual é objeto desprezível, de valor quase nulo, um estereotipo efêmero e facilmente restituível. O valor está na informação impressa sobre a fotografia, que está guardada no protótipo, o “negativo”. E tal protótipo foi produzido automaticamente pelo aparelho fotográfico, segundo determinado programa contido no aparelho. O fotógrafo não trabalha, mas funciona dentro do programa do aparelho e reprograma o aparelho. O propósito do fotógrafo não é produzir fotografias, mas o de transmitir informações por meio da fotografia. O que fascina o fotógrafo não é o papel fotográfico, o objeto, mas a informação a ser transmitida. O papel fotográfico é para o fotógrafo o que a pele é para o Vampyroteuthis: suporte de mensagens coloridas. Será, pois, a visão da arte vampyrotêuthica necessariamente a visão do nosso próprio futuro imediato? Será a sociedade do futuro necessariamente sociedade do ódio, da mentira, da violentação do outro por sedução e pelo engodo? Há razões para dizer que tal futuro é provável, mas não inevitável. A diferença entre a arte do Vampyroteuthis e a arte humana futura é esta: embora venhamos a desprezar o mundo dos objetos tanto quanto ele o despreza, embora tal mundo passe a ser para nós mero conjunto de canais efêmeros de comunicação como o é para ele, emergimos, ao contrário dele, de uma luta contra os objetos que levou dezenas de milhares de anos. Tal luta e as experiências adquiridas durante ela estão guardadas em nossa memória, mas não na sua. Pois travamos tal luta em cooperação com todos os homens contra os objetos, e pudemos sair vencedores apenas graças a tal cooperação de todos. Ainda guardamos na memória que inicialmente, no paleolítico, todos os homens eram constantemente ameaçados pelo mundo dos objetos, e portanto obrigados a se unirem contra tal mundo. De maneira que para nós, os homens, o outro não é apenas o adversário a ser violentado para ser informado, mas também o aliado que informa junto conosco. Por certo: tal lembrança da aliança primordial vai caindo no esquecimento sob o impacto da cultura de massa. Mas continua presente, e pode evitar que nos transformemos em herdeiros e transmissores de informação programada. Podemos observar no Vampyroteuthis que a programação das informações pode dispensar aparelhos. O próprio organismo pode passar a funcionar como aparelho. O funcionamento aparelhístico pode ser “integrado”. O comportamento aparelhístico pode “superar os aparelhos”. Pode surgir o totalitarismo de aparelhos integrados, portanto invisíveis e imperceptíveis, como a massa gelatinosa do Vampyroteuthis. A contemplação da arte vampyrotêuthica evita pois que glorifiquemos a arte total, o artificial, o artifício, a artimanha. Que evitemos todo romantismo. Porque o Vampyroteuthis ilustra a essência do romantismo: o inferno.

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Sound installation for the release of the book by Louis Bec and Vilém Flusser in its portuguese translation.

credits

released May 17, 2011

Publisher: Annablume (www.annablume.com.br)
Writers: Vilem Flusser & Louis Bec

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Operário Ribeiro São Paulo, Brazil

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